O Ministério Público da Bahia arrumou uma forma de oferecer a seus promotores e procuradores pagamentos extras de até R$ 120 mil ao ano. O arranjo é obra da ex-procuradora-geral de Justiça do estado Ediene Lousado e abre aos membros do MP baiano a possibilidade de vender 60 dias das férias ou licenças-prêmio anualmente. Isso serviria como forma de compensar a perda do auxílio-moradia.
Lousado foi chefe do Ministério Público da Bahia de março de 2016 a março de 2020. A partir de janeiro de 2018, editou ao menos cinco atos sistematizando a venda de férias e licenças que beneficiam a ela mesma e aos colegas.
Promotores e procuradores são alguns dos poucos servidores públicos que têm direito a 60 dias de férias por ano. Fora isso, têm direito a 90 dias de licença-prêmio remunerada a cada cinco anos de trabalho ininterruptos. Para isso, basta que não cometam faltas disciplinares.
Já fora da chefia do MP, em dezembro, Lousado foi afastada do cargo de promotora por ordem do Superior Tribunal de Justiça após ser implicada na operação Faroeste. A investigação apura casos de corrupção envolvendo membros do Judiciário e do Ministério Público baianos.
Os atos de Lousado sobre a venda de férias e licenças, contudo, seguem em vigor. Foram eles também que criaram uma situação sui generis entre os membros do órgão: “ninguém mais tira férias”, confidenciou um promotor.
De fato, após as medidas da ex-procuradora-geral, a maioria dos promotores e procuradores têm preferido trocar os períodos de descanso remunerado a que têm direito por dinheiro, transformando algo que deveria ser excepcional em sistemático. Quem paga, é lógico, são os cidadãos baianos.
Só em 2020, quando promotores e procuradores foram orientados a trabalhar de casa devido à pandemia, a compra de férias e licenças pelo Ministério Público da Bahia gerou um gasto extra de mais de R$ 37 milhões ao órgão. Em 2017, antes de Lousado facilitar a venda dos benefícios concedidos aos promotores, o gasto com esse tipo de acerto havia sido de R$ 1,6 milhão – cerca de 20 vezes menos.
Até então, os benefícios não gozados por membros do MP eram convertidos em dinheiro apenas quando um promotor se aposentava com férias ou licenças vencidas. A conversão acontecia também em casos extraordinários, como quando um promotor ou procurador era obrigado a se desligar temporariamente do trabalho.
Em dezembro de 2017, por exemplo, o MP da Bahia tinha 580 promotores e procuradores. Naquele ano, 22 membros do órgão venderam suas férias ou licenças. No ano seguinte, após a sistematização das vendas, o gasto do MP com esses pagamentos subiu para R$ 18,6 milhões – aumento de 1.033%. Já o número de promotores e procuradores que se beneficiaram com a venda chegou a 348 – crescimento de 1.481%.
Em 2019, novo aumento: 452 membros do MP optaram por vender suas férias ou licença-prêmio. O gasto do órgão com os acertos saltou para R$ 28,9 milhões. Já no ano passado, a quantidade de promotores e procuradores que trocou seu descanso por dinheiro caiu ligeiramente para 422. O contingente beneficiado, contudo, ainda representa mais de 70% do total de membros do MP baiano.
Em média, cada promotor ou procurador da Bahia que converteu benefícios em pagamentos recebeu mais de R$ 89 mil em pagamentos extras do órgão apenas em 2020.
Isso não quer dizer, porém, que quem vendeu as férias ficou sem dias de descanso. Promotores e procuradores do MP baiano podem faltar ao trabalho até 12 dias por ano para resolver assuntos pessoais. Além disso, acumulam duas folgas por cada dia trabalhado em plantões em finais de semana ou feriados. Ou seja, conseguem se programar para uma viagem ou outra mesmo sem as férias oficiais.
‘Conveniência’ própria
À primeira vista, a troca das férias e licenças por pagamentos em dinheiro deveria acontecer apenas em casos excepcionais, segundo as regras estabelecidas por Ediene Lousado. Como, por exemplo, quando um promotor ou procurador fosse diagnosticado com câncer, HIV ou uma doença terminal.
As regras editadas por ela, contudo, têm uma brecha. Os membros do MP da Bahia podem vender suas férias e licenças desde que isso seja “conveniente” e esteja dentro das possibilidades orçamentárias do órgão. Dessa forma, o acerto passou a depender basicamente de uma autorização da própria Lousado. Era ela, afinal, quem tinha a última palavra sobre o que interessava à administração do Ministério Público baiano e sobre o orçamento do órgão.
A própria Lousado se beneficiou – e muito – da medida. Em 2018, ela recebeu mais de R$ 35 mil, divididos em 11 pagamentos, ao vender suas férias ao MP da Bahia. Em 2019, o pagamento extra mais que dobrou, porque a procuradora ainda vendeu sua licença-prêmio ao MP. Recebeu, em troca, mais de R$ 65 mil. No ano passado, ela voltou a vender as férias. Recebeu, ao todo, quase R$ 99 mil.
Deltan Dallagnol também vendeu as suas férias em 2020 (e embolsou R$ 70 mil!). Contamos essa história na nossa newsletter, dia 30. Assine: todo o sábado de manhã, conteúdo exclusivo na sua caixa de e-mail.
Fora isso tudo, ela recebeu salários mensais do MP que ultrapassaram os R$ 32 mil mensais. Enquanto foi procuradora-geral, aliás, os pagamentos foram acrescidos de R$ 10,6 mil de gratificação pelo cargo.
Vale lembrar que o teto constitucional – valor máximo que um funcionário do estado pode receber no Brasil – é de quase R$ 39,3 mil. Quando era procuradora-geral da Bahia, Lousado recebia um valor nominal tão alto que parte dele precisava ficar retido pelo MP para que o órgão não desrespeitasse o teto ao pagar a então chefe.
Não ficaram retidos, entretanto, os valores das vendas de férias e licença-prêmio. Isso porque eles não entram na conta do teto constitucional, já que são considerados uma indenização paga aos servidores por terem aberto mão de seu descanso remunerado para trabalhar.
Aumento camuflado
Excluído do limite do teto, o pagamento em dinheiro por férias e licenças acabou convertendo-se num aumento camuflado para a maioria dos membros do MP da Bahia. O próprio calendário de pagamentos dos promotores e procuradores já leva em consideração o valor extra que eles podem optar por receber. Quem vende as férias ou licença não fica um mês sequer recebendo só seu salário regular. Sempre há algo a mais no contracheque.
Em janeiro de 2020, por exemplo, além dos salários, todos os membros do MP da Bahia receberam adiantado o terço constitucional que todo trabalhador que sai de férias tem direito. A partir de fevereiro, começou a ser pago de forma parcelada o pagamento extra para quem decidiu vender seu descanso remunerado. A venda de férias e licença foi acertada em dez prestações, creditadas até novembro.
Já em dezembro, o salário do mês veio acrescido do 13º.
Segundo os contracheques publicados pelo próprio MP em seu site, 21 membros do órgão receberam dez pagamentos de R$ 10 mil ou mais de fevereiro a novembro por conta da venda de férias ou licenças no ano passado. Ou seja, conseguiram um pagamento extra de mais de R$ 100 mil no ano. Doze deles receberam ao todo R$ 106 mil. Outros 192 membros, receberam ao todo quase R$ 99 mil, incluindo Lousado.
Norma Angélica, promotora que assumiu o cargo de procuradora-geral de Justiça da Bahia em março do ano passado, também aproveitou a brecha e vendeu suas férias – recebeu R$ 99 mil extras.
Angélica e o MP da Bahia foram procurados para comentar o gasto milionário com a compra sistemática de benefícios de membros. Não se pronunciaram. A Associação dos Membros do Ministério Público da Bahia também foi questionada porque tantos promotores e procuradores trocam suas férias ou licença por dinheiro todos os anos. Fez que não era com ela.
Privilégio de poucos
As regras do MP para venda de férias e licenças valem somente para promotores e procuradores. Os demais servidores do órgão não têm 60 dias de férias e, sim, 30, como todo brasileiro que trabalha com carteira assinada. Eles tampouco podem trocar seus períodos de descanso por dinheiro.
Em 2015, a Assembleia Legislativa da Bahia aprovou uma proposta do governo baiano para restringir esse tipo de acerto para os funcionários públicos estaduais. A reforma obriga os servidores a gozar as férias e as licenças às quais eles ainda têm direito.
Na época da reforma, o governo da Bahia dizia que queria economizar R$ 200 milhões com as restrições sem especificar se essa economia seria anual ou não. Só o MP gastou R$ 85 milhões com pagamentos de férias e licenças em três anos.
Tanto o MP quanto o governo baiano foram procurados para que explicasse por que essa regra não se aplicou aos promotores e procuradores. Não responderam.
O advogado da promotora Ediene Lousado, Milton Jordão, informou que não conseguiu contatá-la para que se manifestasse acerca do assunto. Jordão, contudo, falou sobre o afastamento da promotora do MP por causa da Operação Faroeste, que considera desnecessário e desproporcional.
O ministro do STJ Og Fernandes entendeu que Lousado deveria ser afastada pois investigações apontaram que ela vazava informações sigilosas do MP da Bahia para o então secretário de Segurança do Estado, Maurício Barbosa. Ele, então, manipulava operações policiais e até grampos para favorecer criminosos. Barbosa já foi exonerado.
Fernandes entendeu também que Lousado ostenta prestígio especial pelas funções que ocupou e isso poderia ser um risco para o andamento das apurações. Além de chefe do MP baiano, ela foi membro auxiliar da Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público e chegou a ser cotada para ocupar uma cadeira como conselheira do órgão.
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