Apesar de se dizer uma instituição “apartidária”, o Conselho Federal de Medicina tem entre seus conselheiros mais influentes um secretário do governo de Jair Bolsonaro. O ginecologista Raphael Câmara, tido como membro da ala ideológica do governo federal, acumula o cargo de conselheiro do CFM e de secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.
Não bastasse a proximidade entre o presidente da República e o presidente do CFM, Mauro Ribeiro, o secretário Raphael Câmara, representante do Rio de Janeiro, é descrito internamente por médicos que participam das reuniões do conselho como o responsável por fazer a ponte entre o governo Bolsonaro e o órgão, informando o executivo federal das discussões e debates que rondam o conselho, além de pressionar seus colegas de jaleco para evitar criticar o presidente e suas ações no combate à pandemia.
Apesar de ter assumido um cargo dentro do Ministério da Saúde em junho de 2020, Câmara não solicitou afastamento das funções de conselheiro. Não é ilegal manter os dois cargos, mas médicos que integram o órgão relatam que sempre foi uma questão de ética pedir licença do conselho ao assumir um cargo público, para evitar possíveis conflitos de interesses. “Como coordenar uma autarquia independente com membros do governo fazendo parte das decisões?”, questiona uma das fontes ouvidas pela reportagem.
Raphael Câmara também é o responsável por levar propostas de parcerias com ministérios e pautar discussões controversas no conselho para defender posições conservadoras, amparadas pelo governo federal. O tema que o secretário defende com unhas e dentes, segundo médicos ouvidos pela reportagem, é a proibição do aborto.
Não à toa, Câmara é relator da Resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, o Cremerj, de número 296/2019, que obriga a notificação dos estupros atendidos por médicos aos órgãos policiais. A medida dificulta o acesso ao aborto legal, já que impede as mulheres que decidem não fazer uma denúncia de conseguirem atendimento médico sem que o caso vá parar na delegacia – no Brasil, apenas 35% das mulheres decidem registrar um estupro na polícia. Dois meses depois de Câmara entrar no Ministério da Saúde, essa medida foi implementada pelo governo federal em âmbito nacional.
Câmara tem poder de propor novas resoluções e pode trabalhar para influenciar e convencer colegas do CFM a votar no seus pareceres.
A reportagem procurou Raphael Câmara, que admitiu ser alinhado ao governo federal, mas afirmou não ter poder deliberativo no CFM, o que, segundo ele, diminui a chance de conflito de interesses entre governo e conselho.
“Tão logo assumi, a primeira coisa que fiz foi declarar por escrito para os órgãos competentes todos os possíveis conflitos de interesse, inclusive meu cargo honorífico de conselheiro federal, inclusive tomei o cuidado de só assumir após ter todos os pareceres jurídicos dando certeza da legalidade”, afirmou o secretário do Ministério da Saúde em uma nota, ressaltando que não faz parte da diretoria do CFM e que, se em algum momento surgisse um conflito de interesse, “ele certamente não participaria da discussão e/ou da votação”, disse em nota.
Mesmo sem a palavra final sobre decisões, vale ressaltar que Raphael Câmara é conselheiro efetivo, cargo considerado essencial pela classe médica, porque o médico-conselheiro representa o CFM em todas suas áreas de atuação. Câmara tem poder de propor novas resoluções, revisões de outras resoluções e pode trabalhar para influenciar e convencer colegas a votar no seus pareceres. “Ele está dentro de todas as discussões e continua tendo poder de voz e de votos nas sessões plenárias, que é onde isso tudo é deliberado”, relata um médico do conselho.
O médico alinhado ao bolsonarismo também é ferrenho defensor do projeto de abstinência sexual como política pública, encabeçado pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
Ele comentou o assunto em um artigo publicado na Gazeta do Povo, em janeiro de 2020. “A iniciação sexual precoce, com idade aproximada aos 15 anos, está associada ao menor uso de preservativo, ao aumento de relações sexuais e de parceiros e à maior chance de DSTs e gestações indesejadas. Então, como não incluir a abstinência sexual em uma política dirigida para este público de adolescentes?”, indagou.
O médico negou defender as pautas da ministra Damares dentro do CFM. “Com todo o respeito, essa assertiva chega a ser esdrúxula. Eu não defendo projetos da ministra Damares Alves. Eu defendo projetos meus e a favor da vida. Se defender projetos da ministra é ser contra o aborto, contra o estupro, contra matar bebês indígenas, contra agressão de mulheres, então realmente eu defendo os dela e ela os meus. Por sinal, uma excelente ministra. E sim. Eu me considero alinhado ao governo federal”.
Um exemplo da influência ideológica de Câmara no conselho se deu em janeiro de 2020. O Intercept obteve acesso à ata de uma reunião plenária em que o médico pediu para dar suas “contrarrazões” à respeito da resolução número 2.265 do CFM, um dispositivo que traça orientações e regras específicas para cuidado de pessoas transgênero.
A resolução define que jovens a partir dos 18 anos são donos de seus próprios corpos e estão autorizados a iniciar um tratamento de mudança de gênero, com hormonioterapia e até mesmo cirurgias plásticas. Câmara é contra e queria derrubar esse dispositivo para definir que uma decisão pessoal como essa só possa ser tomada por adultos a partir de 21 anos. Mas foi voto vencido em plenário, que manteve a resolução intacta.
Derrotado, ele foi ao Facebook criticar a decisão, em uma postagem de fevereiro de 2020, publicando um vídeo da deputada estadual Janaína Paschoal, do PSL, que pedia a revogação da resolução.
Um mês depois da derrota, a deputada Chris Tonietto, do PSL fluminense, conterrânea de Câmara, propôs um projeto de lei que pede a revogação dessa resolução do CFM.
Câmara e Tonietto são amigos. O médico já chegou a convidar a deputada para participar de uma sessão plenária do CFM no dia 29 de outubro de 2019. A ministra Damares Alves participou do encontro, também à convite de Câmara, e solicitou o apoio e parceria do CFM para dois projetos do seu ministério. O primeiro dizia respeito a uma campanha contra o estupro e abuso sexual de crianças, e o segundo visava coibir a violência contra a mulher.
“Uma deputada mulher [Tonietto] que a esquerda odeia e de muita competência. Ou seja, a defesa não é das mulheres. É das mulheres de esquerda. Não propus nada a ela. Ela responde pelo que faz”, disse Câmara ao Intercept.
Nas redes sociais de Raphael Câmara também é fácil encontrar elogios e demonstrações de afeto a membros do governo. Em uma postagem de 27 de abril de 2020, o médico publicou agradecimentos e elogios vindos do senador Flávio Bolsonaro, do Republicanos, filho do presidente Jair Bolsonaro, e da ministra Damares Alves.
“Ministra Damares e senador Flávio Bolsonaro reconhecem publicamente nossa luta contra o aborto”, escreveu.
Câmara ressaltou que sempre existiu uma ponte entre o presidente Bolsonaro e os médicos. “O presidente foi eleito com apoio maciço dos médicos. O presidente Mauro já foi recebido inúmeras vezes pelo presidente muito antes de eu assumir o cargo e sempre que pedir audiência com o presidente será recebido e em nada precisou ou precisará de minha intervenção. Aliás, eu nunca fiz essa ponte para qualquer audiência do CFM com o presidente. Ela é simplesmente desnecessária”, afirmou.
Grande parte dos conselheiros do CFM é filiada a partidos aliados a Bolsonaro.
Procurado, o CFM ressaltou que acumular os dois cargos não é ilegal. “Tornam inelegíveis médicos que, por exemplo, tenham seus direitos políticos suspensos, ocupem cargos ou função remunerada em Conselho de Medicina, sejam condenados por infração ético-profissional ou judicialmente a pena de suspensão do exercício profissional, entre outras razões”, diz a nota.
Câmara atribuiu as críticas de seus colegas ao fato de serem de “extrema-esquerda” e terem perdido espaço no CFM com sua chegada. “A raiva desses tais poucos ‘colegas’ é porque eu os retirei de cargos que ocupavam há 25 anos defendendo a extrema-esquerda. Vc acha que um médico como eu que tenho doutorado na UNIFESP, mestrado em epidemiologia na UERJ, residências de ginecologia e obstetrícia na UERJ e reprodução humana na UERJ, MBA em gestão em saúde na FGV, diversas pós-graduações todas em universidades públicas, médico concursado da UFRJ num concurso de 1 vaga para dezenas de candidatos e dezenas de artigos publicados em revistas científicas internacionais pode ser chamado de ideológico?!!”, indagou.
Como já noticiado pelo Intercept, o CFM se manteve inerte diante das mentiras e fracassos do governo Bolsonaro durante a pandemia de covid-19, que já matou mais de 220 mil pessoas. Isso porque a chefia do órgão é composta de aliados do presidente. A orientação interna a todos os membros do conselho é sempre clara, conforme relatou um médico que integra as discussões do órgão: O CFM não pode “bater” no governo federal, porque “é o único governo que ouve o conselho”.
Uma nova informação endossa essa sintonia. Grande parte dos conselheiros do Conselho Federal de Medicina são filiados a partidos políticos, a maioria vinculados a siglas que integram a base de sustentação do presidente Jair Bolsonaro em Brasília.
Do PSL ao PT
Ao menos 18 conselheiros efetivos dos 28 que compõem o Conselho Federal de Medicina são filiados a partidos políticos. Desses, 16 integram partidos que apoiam o governo no Congresso Nacional, como PSL, MDB, DEM, PMN, Solidariedade, Podemos e Novo. Dois dos conselheiros, inclusive, tentaram se candidatar a vice-prefeita e a deputado federal.
O CFM disse que não há restrição aos conselheiros de manterem filiação partidária. “Vale ressaltar que o CFM é uma autarquia federal de direito público e que seus membros não representam interesse partidários, mas buscam permanentemente defender os interesses dos médicos, da Medicina e da saúde dos brasileiros”, diz o órgão.
O Intercept recebeu as primeiras informações de um profissional da saúde que participa ativamente do conselho, mas pediu para não ser identificado, temendo represálias. A reportagem confirmou as filiações junto ao sistema do TSE, o Tribunal Superior Eleitoral.
O 3º vice-presidente do CFM, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, por exemplo, tentou ser deputado federal na eleição de 2018 pelo PSL em Alagoas, então sigla de Bolsonaro, à qual o médico segue ligado até hoje. É um ávido defensor do falso “tratamento precoce” para a covid-19, uma junção de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença. Entre os remédios, encontram-se a cloroquina, hidroxicloroquina e o antibiótico azitromicina.
Em uma postagem em seu Facebook, em agosto do ano passado, Emmanuel publicou a foto de uma reunião com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. “Presentes a Ministra Damares e o Secretário Raphael Câmara onde foi explicitada a nova estratégia do MS [Ministério da Saúde] para a abordagem e tratamento precoce do COVID 19. Na ocasião o CFM/AMB [Associação Brasileira de Medicina] saudaram a nova política reiterando a autonomia do médico para prescrever os medicamentos disponíveis no momento, naturalmente com a concordância formal do paciente. A abordagem precoce pode evitar o agravamento da doença preservando muitas vidas”, escreveu.
Outro caso simbólico é o da conselheira pela Paraíba, Annelise Mota de Alencar Meneguesso, que também é filiada ao PSL. Ela tentou ser candidata a vice-prefeita em Campina Grande, na Paraíba, na chapa de Artur Bolinha, também do PSL, mas teve sua candidatura indeferida pelo juiz eleitoral Alexandre José Gonçalves Trineto. O magistrado sustentou a decisão dizendo que Meneguesso não se licenciou do cargo de conselheira do CFM no prazo adequado para concorrer a um cargo público.
Confira a lista de conselheiros do CFM filiados a partidos políticos:
- Donizetti Dimer Giamberardino Filho – conselheiro federal pelo estado do Paraná e 1º vice-presidente – PV
- Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti – conselheiro federal pelo estado de Alagoas e 3º vice-presidente – PSL
- José Hiran da Silva Gallo – conselheiro federal pelo estado de Rondônia e tesoureiro – MDB
- Salomão Rodrigues Filho – conselheiro federal pelo estado de Goiás e 2º tesoureiro – DEM
- Florentino de Araújo Cardoso Filho – conselheiro federal pelo estado do Ceará – NOVO
- Maria Teresa Renó Gonçalves – conselheira federal pelo estado do Amapá – Democracia Cristã
- Júlio Cesar Vieira Braga – conselheiro federal pelo estado da Bahia – NOVO
- Abdon José Murad Neto – conselheiro federal pelo estado do Maranhão – PMN
- Jeancarlo Fernandes Cavalcante – conselheiro federal pelo estado do Rio Grande do Norte – Solidariedade
- Ricardo Scandian de Melo – conselheiro federal pelo estado de Sergipe – NOVO
- Estevam Rivello Alves – conselheiro federal pelo estado do Tocatins – Podemos
- Marco Túlio Muniz Franco – conselheiro federal pelo estado do Amapá – MDB
- Annelise Mota de Alencar Meneguesso – conselheira federal pelo estado da Paraíba – PSL
- José Avelar Dantas – conselheiro federal pelo estado do Piauí – Republicanos
- Marcos Lima de Freitas – conselheiro federal pelo estado do Rio Grande do Norte – NOVO
- Cleiton Cássio Bach – conselheiro federal pelo estado de Rondônia – NOVO
- Nazareno Bertino Vasconcelos Barreto – conselheiro federal pelo estado de Roraima – NOVO
- Tomé César Rabelo – conselheiro federal pelo estado do Tocantins – PT
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