Por que grandes jornais topam publicar mentiras sobre a covid-19 em forma de anúncio?

Uma peça publicitária, que defende tratamento precoce ineficaz e potencialmente fatal, foi estampada em oito jornais do país. Eles se tornaram coatores de um atentado contra a saúde pública.

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Visão aérea do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. Foto: Michel Dantas/AFP via Getty Images

O país passa pelo seu pior momento desde o início da pandemia. São mais de 250 mil mortos, um número de infectados que não para de crescer e um ritmo de vacinação que levará até sete anos para imunizar 70% dos brasileiros. Para piorar, a campanha nacional de vacinação está sendo coordenada por um sujeito que já foi denunciado por tentativa de desvio em uma campanha de vacinação.

Enquanto vários países tiveram queda importante de novas infecções e mortes, o Brasil segue acelerando na contramão. O negacionismo científico que norteia todas as ações do governo Bolsonaro no combate à pandemia é quem nos trouxe a esse cenário trágico. A loucura começou com a negação da gravidade da doença, passou pela promoção de remédios ineficazes e agora enseja a desconfiança na eficácia das vacinas e no uso de máscaras.

A imprensa tem cumprido um papel importante no enfrentamento do negacionismo ao mostrar as mentiras propagadas pelo governo. Grandes empresas se juntaram em um consórcio de notícias criado para combater a desinformação propagada pelo governo federal sobre a doença. Mas, se pagar bem, que mal tem abrir um espacinho para as mentiras que atentam contra a saúde pública? Foi isso o que grandes jornais brasileiros fizeram nesta semana ao dar voz para o lobby negacionista/bolsonarista de uma associação médica que promove o charlatanismo.

Pelo menos oito jornais venderam meia página para a promoção de remédios comprovadamente ineficazes para o tratamento de covid. São eles: Folha de S. Paulo; O Globo, do Rio; Zero Hora, do Rio Grande do Sul; Correio Braziliense, do Distrito Federal; o pernambucano Jornal do Commercio; Estado de Minas; o cearense O Povo, e o Correio, da Bahia. A associação Médicos Pela Vida parece ter escolhido comprar espaço no jornal de maior circulação dos estados mais populosos, além do Distrito Federal.

O grupo foi criado no ano passado e reúne médicos que desrespeitam as recomendações dos principais órgãos internacionais, como o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, CDC, dos EUA, e a Organização Mundial da Saúde, a OMS. Entre os médicos há olavistas e bolsonaristas que usam as redes sociais para chamar o coronavírus de “vírus chinês” e defender o deputado-presidiário Daniel Silveira. O grupo foi criado no ano passado, mas já tem cacife financeiro para bancar anúncio de meia página em oito grandes jornais do país. A ligação desse grupo com o bolsonarismo é apenas ideológica ou também é financeira? Acho que o povo merece saber a origem dessa grana.

Intitulada “Manifesto pela Vida”, a peça é, na verdade, um manifesto pela morte. Promove a cloroquina e outros medicamentos igualmente ineficazes em qualquer etapa do tratamento para covid. Remédios cujos efeitos colaterais podem ser graves como a hepatite medicamentosa, por exemplo, causada pela ivermectina. O uso indiscriminado desse remédio aumentou muito e já há relatos de médicos atendendo pessoas com hepatite causada por ele.

Esse grupo de médicos se encontrou com Jair Bolsonaro no ano passado em uma reunião intermediada pelo ex-ministro Osmar Terra, que também integra o grupo. Terra, é bom lembrar, é o médico negacionista que chamou o coronavírus de “gripezinha” e jurou que o país não teria nem 800 mortes por covid. Mesmo depois de ter seus argumentos espancados pela realidade (chegou a ficar internado pela “gripezinha”por 12 dias, sete deles na UTI), o doutor alucinado segue promovendo o negacionismo.

A peça é, na verdade, um manifesto pela morte porque promove tratamento ineficaz e que pode levar à morte.

Foto: Reprodução/Twitter

No mesmo dia da publicação do manifesto, boa parte desses mesmos jornais publicaram a notícia de que mais de 90% dos pacientes internados por covid nas UTIs no Rio Grande do Norte tomaram a ivermectina de forma profilática ou logo após serem diagnosticados com a doença. O manifesto, portanto, é um atentado contra a saúde pública. Os jornais que toparam publicar o anúncio são co-autores desse absurdo.

A publicação da mentira foi uma decisão dos donos desses jornais. Enquanto jornalistas se arriscam na linha de frente da cobertura da pandemia e estão sob ataque permanente da milícia virtual bolsonarista por combater a desinformação propagada por ela, os patrões parecem não se importar com isso. Toparam vender um espaço nobre dos seus jornais para divulgar uma mentira que é desmentida todos os dias pelos seus funcionários. É um verdadeiro escárnio contra os leitores e os jornalistas dessas empresas.

‘O jornalismo deve andar a reboque dos fatos, não do lucro’.

A agência de checagem Aos Fatos conferiu as informações contidas no manifesto. Segundo a agência, os sites citados como fonte apresentam “pesquisas preliminares ou que não foram revisadas por outros cientistas. Há casos ainda de pesquisas que tiveram seus resultados totalmente alterados, ou seja, que concluíram que medicamentos não funcionam para tratar a infecção, mas que, nas plataformas, aparecem com um resultado distorcido em favor do uso das mesmas drogas”.

No dia seguinte à publicação do manifesto, a Folha estampou a manchete: “Médicos usam informações falsas para defender tratamento ineficaz contra Covid-19″. É a Folha desmentindo as informações publicadas na Folha. É o jornalismo da empresa desmentindo as mentiras autorizadas pelo departamento comercial. O Globo fez o mesmo e publicou: “Entidades e especialistas em saúde condenam manifesto que defende tratamento precoce da Covid-19″. Menos mal, mas o estrago é irreparável.

O quão bizarro é um jornal lucrar com a publicação de uma mentira em um dia e, no dia seguinte, aparecer dizendo que publicou informações que eles já sabiam ser falsas? Entendemos que a empresa precisa de arrecadação, mas o jornalismo deve andar a reboque dos fatos, não do lucro. A Folha precisava dessa grana — dizem que custou aproximadamente 200 mil —  para se manter viva? É evidente que não.

O proselitismo negacionista do manifesto também fere a ética médica. No Código de Ética Médica, há um capítulo chamado “Publicidade Médica”. Ele diz o seguinte:

Interpelada por jornalistas da Folha, a Associação Nacional de Jornais, a ANJ, afirmou que não se manifestaria a respeito do anúncio. Para o Congresso em Foco, a entidade preferiu não dar uma posição sobre o episódio, mas disse defender “a liberdade de expressão, que vale também para essa nota [anúncio]”. É o mesmo conceito equivocado de liberdade de expressão que faz com que políticos bolsonaristas preguem o fechamento do Congresso e ameacem agredir fisicamente ministros do STF. Na prática, a ANJ está dizendo que informes publicitários são livres para disseminar mentiras que colocam a saúde da população em risco.

Enviei e-mails para o Zero Hora, a Folha e O Globo perguntando se eles sabiam que o anúncio feria a ética médica e por que eles toparam publicar. O Zero Hora se limitou a afirmar que se tratou de uma “publicação comercial paga feita em jornal sob responsabilidade da entidade que assina o Informe Publicitário”. Folha e Globo não responderam até o fechamento deste texto.

É bom lembrar que essa não é a primeira fresta aberta para o negacionismo pela grande imprensa. Como esquecer que Osmar Terra foi alçado à condição de médico qualificado para debater sobre a pandemia? Ou de como os portais dos grandes jornais lucram até hoje com a divulgação de propaganda enganosa (inclusive de remédios) disfarçada de notícia?

Vivemos a maior crise sanitária dos últimos tempos. Será que seria pedir demais que os veículos de jornalismo parassem de abrir espaço para picaretas confundirem a opinião pública com desinformação?

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https://github.com/addpipe/simple-recorderjs-demo