Eu me apaixonei pela Nova Zelândia assim que cheguei aqui pela primeira vez, em 2012. Aos 31 anos, vim visitar meus irmãos durante três meses e fiquei impressionada com a infraestrutura do país para receber pessoas com deficiência física.
Era muito diferente do Brasil, onde as calçadas tinham — e ainda têm — buracos, e os taxistas muitas vezes se recusavam a me atender com medo que a cadeira de rodas estragasse os bancos dos seus carros.
Era um ambiente novo. Ainda em 2012, me organizei para me mudar para cá. Pedi licença do cargo de servidora pública e desembarquei no país em 2 de outubro. Comecei com um visto de estudante, aprendi inglês e logo fui admitida em um emprego, o que me deu a chance de progredir para um visto de trabalho. Todos com validade de um ano.
Mas eu não queria apenas um ano. Eu queria morar perto da minha família, que havia praticamente toda se mudado para Nova Zelândia. Voltar para o Brasil não era mais uma opção.
Em 2014, depois de dois vistos de trabalho, solicitei o visto de residência. Eu preenchia todos os requisitos para pedir a autorização: tinha vínculo com o país, tinha um emprego estável, pagava impostos e gerava valor para a economia. Porém, um desses pré-requisitos não foi aceito pelo Ministério da Imigração neozelandês: a minha condição de saúde foi considerada um gasto muito alto.
A política de imigração local diz que é preciso ser saudável. Se você tem alguma das condições listadas, o seu pedido de residência pode ser negado, a não ser que você consiga uma isenção do requerimento de saúde, isto é, que você não precise apresentar seu histórico médico ao governo.
Fiquei paraplégica aos 19 anos por causa de uma inflamação na medula espinhal. Foi também nessa mesma época que descobri o lúpus. Há mais de dez anos a doença autoimune estava estabilizada. Eu também já havia feito a reabilitação para viver de forma independente na cadeira de rodas. Mas isso não foi o suficiente para o governo neozelandês me considerar uma pessoa saudável.
Em uma longa linha do tempo de quase sete anos, enfrentei idas e vindas de processos. Primeiro, eu tentei o Medical Waiver, um requerimento que o isenta de apresentar seu histórico de saúde. Depois de muita burocracia e muito estresse com a Imigração, meu primeiro visto de residência foi negado em 2015. Dias depois da decisão, apelei ao Tribunal da Imigração.
Mais nove meses se passaram até o tribunal decidir que a Imigração cometeu erros. A ação voltou à Imigração para ser refeita. Mais um ano e sete meses de espera, burocracia e advogado, minha residência foi negada pela segunda vez em agosto de 2018. Dessa vez, os custos financeiro e emocional foram enormes.
‘Não importava o quanto tentasse, sempre iria parar nessa discriminação sistêmica’.
Esse foi o pior ano da minha vida: o lúpus retomou com força, quebrei o pé e tive várias infecções. Foram oito internações em apenas um ano. Tentei novamente um novo visto de trabalho, que foi negado em setembro de 2019. A razão era a mesma: eu “custaria um preço alto para o sistema de saúde”. Recorri e recusaram de novo. Com o visto de trabalho expirado e os vistos de residência negados, eu poderia ser deportada a qualquer momento.
A minha chance de ficar era permanecer ilegal e apelar contra a deportação por causas humanitárias. Sob essa condição, eu não poderia trabalhar, e também não havia previsão de quanto tempo poderia ficar no país.
Em fevereiro de 2020, o Tribunal da Imigração negou meu apelo contra a deportação e me deu três meses para me organizar e deixar o país. Apelei, então, pela última vez. Me restava apenas um último recurso antes de ser deportada: apelar para o ministro da Imigração e pedir por Direções Especiais, solicitando a abertura de uma exceção à regra.
Fiquei cerca de dez meses na berlinda, prestes a ser deportada a qualquer momento. Por causa da pandemia de covid-19, o governo estendeu vistos temporários. Foi a minha sorte. Pude ficar no país aguardando o resultado da minha última apelação. Não foi fácil. Foi uma das lutas mais difíceis que tive na minha vida. Lutar contra o sistema é muito difícil. No Brasil, passei por várias situações em que sofri preconceito, mas eu sempre podia fazer algo a respeito disso.
Naquele momento, para a Nova Zelândia, não importava que eu trabalhasse, pagasse impostos e tudo que eu já havia feito e que ainda poderia fazer pelo país. Nada disso importava porque eu sou paraplégica e vou custar caro.
Chegou uma hora em que acabei acreditando nesse discurso, de que eu não tinha valor, que era um peso para o país onde escolhi viver e para minha família. É muito desumano. Comecei a crer que eu não deveria estar aqui mesmo. Fiquei muito deprimida. Não importava o quanto tentasse, sempre iria esbarrar nessa discriminação sistêmica. Não é como na situação do táxi, que era só chamar outro. Não havia outro país para ir, minha família está aqui.
Como disse anteriormente, voltar para o Brasil não era uma opção. A ideia era ficar com a minha família e questionar e desafiar um sistema que discrimina quem tem deficiência. Após me tornar cadeirante, mergulhei no movimento das pessoas com deficiência.
O meu caso ganhou bastante destaque na imprensa neozeolandesa. Quando estava para ser deportada, escrevi uma carta aberta para o então ministro da Imigração Iain Lees-Galloway. Meu apelo foi publicado no jornal de maior circulação no país, o NZ Herald, e a notícia acabou repercutindo em outros veículos da Nova Zelândia.
Em 22 de julho de 2020, recebi o aceite da minha residência. A carta da ministra associada da Imigração, Hon Poto Williams, afirmava que o meu visto seria garantido sem levar em conta o requerimento de saúde.
Recebi meus papéis da residência em 8 de setembro. Depois de dois anos como residente, poderei solicitar o visto permanente. Após mais três anos, posso pedir a cidadania, que é minha intenção.
Sei que não fui a única pessoa com deficiência a passar por isso tudo na Nova Zelândia. Quero que o meu caso contribua para mudar a lei no país. Por isso, abri uma petição online para que a legislação de imigração seja alterada, e que pessoas com doenças crônicas ou deficiências não passem pelo que eu passei. Vou entregar a petição no Parlamento no dia 23 de março. Quanto mais assinaturas conseguir, mais pressão para que a mudança de lei ocorra. Faremos uma marcha de protesto antes da entrega do pedido.
Apesar de estarem à frente no aspecto de infraestrutura, os neozelandeses estão atrasados nas questões de direitos quando comparados ao Brasil. Faço parte de um grupo de ativistas que está em campanha para criar a lei da acessibilidade aqui. Essa legislação já existe nos EUA há 30 anos e vigora no Brasil desde 2000.
Uma das grandes lições que aprendi nessa batalha é que uma pessoa não tem como fugir da sua missão. Me mudei para o outro lado do mundo com a esperança de jamais ser discriminada de novo. Por vivermos em uma sociedade capacitista, quis evitar o sofrimento associado à minha deficiência. Mas precisei aceitar que sempre serei tratada diferente, independente do país.
Hoje, aos 38 anos, percebi que tenho a responsabilidade de ampliar a voz das pessoas com deficiência e que devo lutar pela igualdade.
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